Se, segundo Platão, são os números que governam o mundo, “Os Elementos” escritos por Euclides, três séculos antes de Cristo, será o guia que revelará à humanidade, os mistérios da matemática desde os postulados básicos da álgebra até alcançar a complexidade da geometria espacial das esferas e cones estabelecendo axiomas universais que, ainda hoje, não foram superados.

Essa solidez (e ao mesmo tempo fluidez) das reflexões euclidianas conferiram o mérito da obra mais reeditada e traduzida, perdendo apenas para a Bíblia cristã (inclusive, em 1482, foi um dos primeiros livros didáticos a ser selecionado, em Veneza, para impressão na máquina desenvolvida por Gutemberg). “Os elementos” de Euclides influenciaram filósofos, arquitetos, músicos, escritores etc. Dentre esses escritores, gostaria de destacar Lewis Caroll (escritor que se popularizou com a obra “Alice no País das Maravilhas”). No texto Euclid and His Modern Rivals, Caroll defende que “Os Elementos” continue a ser ensinado e lido nas escolas inglesas. Em plena era vitoriana, os currículos e programas escolares ingleses passaram por uma reforma e se questionava a validade da permanência de autores e obras antigas nas escolas britânicas. Tais discussões invadiam os jornais da época para que a população também se envolvesse; e foi aí, diante dessa discussão e sentindo a necessidade de defender a grande obra euclidiana, que Caroll teve uma ideia original – desenvolveu um texto para o teatro em que um professor cansado, no momento em que corrigia provas e elaborava aulas, adormece e sonha que recebe a visita de um Euclides fantasmagórico que propõe ao professor, procederem uma análise minuciosa dos recentes manuais que estavam sendo cogitados para substituir “Os Elementos”. Na trama, o professor conclui que todos aqueles “novos manuais”, de algum modo, parafraseavam o que Euclides já havia dito, também entravam em contradição, produziam lacunas, incorreções e/ou atualizações inúteis.

Em “Euclides e a incomensurabilidade”, Aroldo Ferreira Leão argutamente escolhe o livro X, e, de maneira diversa a Lewis Caroll, seguindo em uma vertente filosófica, matemático e poética atualiza diversas discussões de Euclides com a matemática contemporânea, através do livro considerado o mais hermético dos treze que formam Os Elementos. Em um tecimento textual meticuloso e profundo, Leão alcança o que se propõe – revelar os “óleos essenciais” (os sumos) que conduzem a compreensão do infinito (o incomensurável) expressos em diversos postulados e axiomas cifrados nas principais reflexões do Livro X, dentre eles poderíamos citar os “números irracionais”. Em diversas centrifugações discursivas que conduzem o leitor ao interior desses postulados e axiomas “caríbdianos”, Leão, através da junção da sua prodigiosa tese a uma tradução cuidadosa vertida diretamente do grego, realizada por seu orientador do doutorado Prof. Dr. Irineu Bicudo, fornecem as pistas que vão sendo, gradativamente, cedidas ao leitor. Nesse tecer, foi fundamental a formação híbrida de Leão que trafega da Engenharia Elétrica e matemática e perpassa os estudos linguísticos, literários, culturais chegando aos teológicos. Teológicos? Sim, por que não? O próprio Santo Agostinho revelou que “sem os recursos da Matemática não nos seria possível compreender muitas passagens da Santa Escritura”. Nas cinco partes de sua obra, Leão, tal como Virgílio na Divina Comédia, conduz-nos nas veredas misteriosas dos principais aspectos do Livro X. Esse histórico e capacidade cognitiva do autor irá proporcionar o resgate do sentido maior do modelo didático grego, tal como Werner Jaeger em a Paideia: a formação do homem grego, que apontava tanto para o domínio físico pleno quanto para a compreensão do logos (razão) e dos saberes morais e espirituais, tendo como meta principal, o alcance da perfeita cidadania, isto é, da consciência do papel social de cada indivíduo no mundo. Em “Euclides e a incomensurabilidade” percebe-se também, em sua estrutura, que a “interdisciplinaridade”; e, de maneira mais desafiante, a “transdisciplinaridade[1]” seria alguns desses pontos intuitivamente desenvolvidos. Conforme Akiko Santos, no texto O que é transdisciplinaridade, esse aspecto trans- seria uma abordagem científica e cultural, em que através de uma nova relação entre os diversos saberes (transgredindo as fronteiras epistemológicas de cada ciência ou disciplina), procura-se alcançar um sentido mais amplo do Universo, da vida e da espécie humana (sobretudo, da relação do ser humano com o meio ambiente). Com isso, temos o rompimento do pensar fragmentário, homogeneizante e dicotômico decartiano; e, alcança-se (ou “restaura-se”) um modo de pensar multidimensional em que se atinge vários níveis de realidade, tendo como fim, o rigor na argumentação, abertura ao novo (ao desconhecido e imprevisível), e, principalmente, ao alcance de uma tolerância maior diante do pensar divergente (tal como foi expresso no Art.14 da Carta da Transdisciplinaridade, no Convento de Arrábida, Portugal, em encontro ocorrido de 2 a 6 de novembro de 1994). Por fim, gostaria de expressar o latente aspecto humanista de Leão em uma renovação da Educação Matemática; e que, talvez influenciado pelos próprios egípcios (assim como foi Euclides) percebeu que, em muitos dos feitos arquitetônicos desse povo, proporcionados pela matemática aplicada, servia para proporcionar uma religação (religare) maior com o divino.

[1] Embora vários autores associem o nascimento do termo “transdisciplinaridade” a Jean Piaget (1896-1980), na realidade parece ter sido o astrofísico Erich Jantsch (1929-1980) quem primeiro definiu formalmente esse conceito, em um artigo intitulado “Inter- and transdisciplinary university: a systems approach to education and innovation”, publicado em março de 1970 no primeiro número do primeiro volume do jornal Policy Sciences ( Jantsch, 1970) (CRUZ & COSTA, 2015, p.197)

Dr. Peterson Martins A. Araújo ( Professor do curso de Letras – UPE)

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