É um poeta, professor de matemática e pesquisador. Nasceu em terras potiguares, precisamente em Parnamirim/RN, a cidade Trampolim da Vitória, e está radicado em Petrolina desde 1996. É casado e tem duas filhas. Autor de 152 livros, tem participação em 41 antologias. Em 2013 recebeu o Prêmio Jabuti, juntamente com diversos professores da UNIVASF, pela escrita do livro Flora das Caatingas do Rio São Francisco, que também teve uma edição em inglês intitulada Flora of the Caatingas of the São Francisco River. Escreveu o terceiro capítulo que tratou dos índios Cariris do Sertão. Aroldo ainda é compositor musical, com cerca de 1000 canções compostas, possuindo três CD’s lançados. É formado em engenharia elétrica, pela UFRN, tendo mestrado em Ciência dos Materiais, pela UNIVASF, e doutorado em Educação Matemática, pela UNESP, onde teve como orientador Irineu Bicudo, o tradutor do original grego de Os Elementos, de Euclides, para o português. Também possui doutorado em Teologia pela FATE/SP. Aroldo é Auditor Fiscal, na Secretaria da Fazenda da Bahia, e professor efetivo de matemática da UNIVASF. Em entrevista a Contexto, Leão fala sobre a migração para o Vale do São Francisco, a vida profissional multifacetada e a atuação na literatura, na música e matemática, nas pesquisas tendo como foco o universo do Sertão. “A Essência do Voo nas Almas Mais Intensas”, “O Frágil Sorriso do Menino Sozinho”, “A Incerteza Reconstrói a Força do Silêncio”, “A Verdade Aguda dos Olhares Profundos”, “Sombras e Solidão”, “Lampião: Um Estudo de Buscas e Essências”, “Cancão: Os Anjos São Crianças Muito Sozinhas” são algumas de suas obras.

 

  1. A infância é um laboratório temporal onde o ser humano pode sonhar “inocentemente” e sem culpa, criar mundos, inventar possibilidades, permitir-se uma fuga da realidade nem sempre generosa. Como foi a infância de Aroldo Leão nas terras potiguares?

 

A infância foi bastante interessante. Parnamirim, minha cidade de nascimento, que na época de minha juventude era uma cidade pacata e acolhedora, sempre teve a influência da capital, isto porque a mesma está a 10km de Natal, e ainda abrigava as bases aéreas da aeronáutica e o aeroporto. Meus pais, seu Heleno e dona Iaci, a quem devo todo o sentimento de ternura e compaixão que possa existir em meu ser, sempre foram incentivadores, entusiastas, para que eu pudesse ter grandes sonhos, lutasse por meus ideais. Até hoje é assim. Meus avós maternos, Severino e Iracema, moravam em Monte Alegre, cidade do agreste potiguar, e para lá minha família se dirigia frequentemente. Ou seja, fui criado entre Natal – Parnamirim – Monte Alegre. Estas três cidades são, com certeza, os elos iniciais de minhas percepções do mundo. É impossível não lembrar de suas ruas, esquinas, rostos, silêncios, feiras, praças, cajueiros, coqueiros, mangabeiras, montanhas, rios, lagoas. O mar do Rio Grande do Norte é também a minha casa. Nele mergulhei e renasci um milhão de vezes. Todo o seu sal, entrelaçado pela verdade onipresente do sol, estão em mim eternamente.

 

  1. A escola é um espaço experimental de socialização e assimilação de saberes, ao mesmo tempo pode ser um ambiente de conflitos, pressões e tensões. É ainda um lugar de interação, amizade e de recordações impagáveis. Quais são as lembranças mais caras de sua passagem pela escola?

 

Eu tive, ainda em Parnamirim, escolas sensacionais. No primeiro grau, da quinta a oitava série, fui para a chamada Escola de Base, que agregava os filhos de militares, ficando na chamada Base Oeste, em um ambiente maravilhoso, onde as salas de aula, embora ficando próximas às pistas de decolagem dos aviões, transmitiam uma energia fora do comum, com as janelas grandes e retangulares, abertas para a luminosidade e os ares infinitos do Rio Grande do Norte. A área escolar englobava muitas salas de aula, diversos campos de futebol, quadras esportivas e até piscinas, uma coisa rara naqueles tempos. Em suma, tínhamos espaço e o verde de inúmeras mangueiras e coqueiros acompanhando nossa chegada à escola que, sem medo de errar, ficava a uns dois quilômetros do portão de entrada. Simplesmente magnífico. Já no segundo grau, do primeiro ao terceiro ano, fui estudar no Salesiano, em Natal. Vivia-se, então, a época dos vestibulares e a influência dos meus tios, por parte de mãe, que foram estudar no Rio de Janeiro, era total. Eles mostravam que era preciso ralar e manter o foco, não titubear, ser persistente. Eu ouvia tudo e sonhava. Meus pais continuavam me estimulando, me orientando. Outra influência importante foram meus primos, por parte de pai, os filhos de minha tia Nazaré, que já tendo feito alguns vestibulares traziam as novidades para mim. Assim, de forma terna e plural, meu ambiente para estudo era singular. Eu recebia entusiasmo de todos os lados. Quando passei em engenharia elétrica, com 17 anos, fechando a prova de matemática com 40 questões, minha prima Laíde vibrava e propagava uma positividade fora do comum. Meus pais sorriam e transmitiam carinho, paz, emoção.

 

  1. Como você vê a produção literária regional e essa dificuldade para publicação de livros no Brasil? Uma editora regional resolveria?

 

A dificuldade de publicação acontece em todo o Brasil. É preciso se pensar tal fato com bastante lucidez e densidade. De início, temos um problema crucial, que é nossa absurda falta de leitores. O fato passa por um sistema de educação que não prioriza os livros, tampouco a leitura, que trata o leitor como um fantasma, que desordena e desequilibra a força da sensibilidade no coração das crianças. Depois, quando os livros são publicados, não circulam, não passam de uma mão à outra, ou melhor dizendo, de uma alma à outra, simplesmente são esquecidos e enterrados no fundo dos abismos complexos da ignorância, do descaso. Criou-se, então, um processo doído e avassalador, que destrói o anúncio da delicadeza e da inteligência, nos espíritos sublimes, nas mentes dispostas a estarem sempre além de seu tempo, fundamentando os ecos das pluralidades, dos ressurgimentos. As bibliotecas são poucas, as livrarias sofrem para vender seus livros, isso quando as possuímos. No geral, o Brasil é um país com poucas livrarias, mesmo em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, metrópoles que ainda não assimilaram, como todas as nossas metrópoles, a questão fundamental do livro em nossas vidas, seus veios e conotações, abrangências e repercussões. Desta forma, fica evidente que em uma nação onde a educação não é prioridade, que o livro jamais conseguirá se impor, se ajustar às magnificências e sustanças de nossa cultura. Com relação à questão da “editora regional”, penso, que ajudaria bastante. Todavia, principalmente no Nordeste, e no Sertão particularmente, teríamos que ter muitas “editoras regionais”, um sentido maior que possibilitasse o encontro verdadeiro do livro com a sensibilidade ou, sendo mais preciso, com a sociedade. E indo mais além, a problemática é bem mais funda e assustadora. Teríamos, então, livros sendo publicados, supostamente, com qualidade de texto e impressão. No entanto, onde estarão os leitores?! Como circularão os livros?! Quem serão os editores?! Nossas crianças, nas escolas e nos, estarão sendo estimuladas a ler e a refletir sobre o que leem?! Nossos adultos, que mal frequentam teatros, museus, bibliotecas, de uma hora para outra, serão movidos pela aura da sutileza dos livros?! Assim, o problema do livro é, pelo menos no Brasil, com seu desinteresse e desestímulo constantes pela leitura, algo fundamental para compreendermos o porquê da nação ser tão desarticulada e favorecedora dos espertalhões, do mau-caratismo. Simplesmente educamos gerações e gerações sem zelo, sem comprometimento, sem sonhos. Em um ambiente deste tipo, geralmente forma-se o salve-se quem puder, terrível e desolador, matando esperanças, suavidades, ternuras, essências.

 

  1. O teórico Walter Benjamin afirmou que as narrativas orais tendem a extinguir-se. O escritor Mia Couto se diz perplexo com o desinteresse crescente dos jovens urbanos em seu País (Moçambique) pelas narrativas, contudo ele se mostrou esperançoso com os jovens interioranos, que, segundo o autor, “ainda sabem contar histórias”. E no Brasil, é possível fazer essa analogia com o País africano?

 

A afirmação de Walter Benjamin vem cercada de um prenúncio que se configura aterrador, mal-assombrado. Contudo, penso, a educação poderia resolver muito bem tal dilema. O fato é que, quase sempre, a modernidade traz o esquecimento das pluralidades das gerações anteriores. É preciso, então, educar nossas crianças a penetrarem em suas próprias almas e resgatarem, com paciência, perseverança e zelo, a memória das verdades que a antecederam. Isso vale para qualquer parte do mundo. Tanto na Alemanha de Walter Benjamin, quanto em Moçambique de Mia Couto, ou no Brasil de tantos escritores sem leitores, de tanta vida que precisava vir à tona, de tanto silêncio amordaçado, de tanta angústia aterradora. Se tivéssemos ajustado as gerações passadas, com uma educação plural e motivadora, que impulsionasse os indivíduos para as descobertas mais profundas de si, com certeza nossas narrativas, de ontem e de hoje, não estariam banalizadas, marginalizadas, corroídas. Vivemos uma época onde a tecnologia impera, não espera por ninguém, gera seus produtos e os vende numa velocidade assustadora, desagregadora. No entanto, reflito, os seres humanos, entre blogs, whatsapps e facebooks, continuam frágeis, desconhecendo seus próprios limites, pouco se importando com o tema da morte a rodeá-los e fundamentá-los nos instantes, banalizando os voos dos sanhaçus, casacas-de-couro e tetéus, não absorvendo os ares das caraibeiras, jacarandás, jequitibás. No final, quem sabe, sobrarão as narrativas de tantas gerações que não conseguiram se achar, que não escutaram seus ecos mais profundos, que se enquadraram no medo, na astúcia, no degredo, na covardia.

 

  1. Ao lançar um olhar às suas obras, percebe-se que você transita com desenvoltura entre produções distintas: literatura, teatro, matemática, música… Embora, prevaleça a poesia como o gênero mais cultivado. É a poesia a sua “menina dos olhos”?

 

De fato, tenho pela poesia uma vinculação profunda, carnal e espiritual. Há muito tempo venho me moldando, articulando dentro do meu ser um voo que me redescubra inteiramente, que me perpetue no canto dos azulões e das peiticas, nas flores amarelas das catingueiras e dos cascudos, nas folhas sutis dos umburuçus, das umburanas, dos umbuzeiros. A tarefa não é fácil, deixa o ser entregue a imprecisões, desequilíbrios, tensões, desarticulações. Mas é preciso seguir, construir em si os elos da percepção singular, do reencontro com meus próprios sonhos e ressurgimentos. As células, moléculas, tripas e ossos se fundem em minha busca por mim mesmo, velho menino sem saber de si, preso a pressentimentos, sopapos e decomposições, burilando a configuração de seus muitos desencontros pelo mundo afora. A busca é incessante e transformadora, a memória transita no terreno pantanoso dos esquecimentos, das dissimulações. Assim, o fato é que, desde minha primeira publicação, A Trilogia da Dor, em 1995, até as duas últimas, Sombras e Solidão, de 2016, e Crônicas do Alvorecer, de 2017, todos os anos publiquei livros de poesia, procurei penetrar no terreno, sempre complexo e surpreendente, da alma humana, vislumbrei, no silêncio de meus focos e frenesis, a possibilidade de construir uma obra que estivesse além de mim mesmo, que expandisse meus sonhos e concepções, que me agregasse à eternidade dos olhares das crianças, dos loucos.

 

  1. Os críticos literários, principalmente do Sudeste insistem em falar sobre literatura regionalista, particularmente quando se referem aos escritores nordestinos. Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez pode ser regional, mas também universal e porque Graciliano Ramos não pode ser também?

Esta questão de regionalismo é, na maioria das vezes, desfundamentada, desestruturada. De fato, a alma possui mergulhos infinitos e transformadores em qualquer parte da Terra. É preciso, então, filtrar o que de profundo e sutil trazem as almas, seus veios e consumações, voos e plenitudes, quedas e ressurgimentos, onde quer que ela esteja. O sentido da “literatura regionalista” é temerário, gera desequilíbrios, desencontros. Na verdade, todo ser humano possui a sua regionalidade e os seus vínculos de ligação com o universo. O processo é complexo e movimenta os ares de nossa própria descoberta interior. Assim, apenas recordando os mestres russos, Dostoievsky, Tolstói, Tchekov, Gorki, Maiakovsky, teríamos, então, uma “literatura regionalista” russa?! Mas estes autores, sob diversos ângulos e conflagrações, discutem em seus textos o que há de mais profundo no indivíduo, expõem a crua verdade humana, cercada tantas vezes de atropelos, ânsias, solidão, culpas, fugas, desnorteamentos generalizados. Desta forma, creio, quando se fala em “regionalismo”, não só o literário, mas também o musical, teatral, da dança, das artes plásticas, constroem-se deturpações assustadoras. De início, pensa-se que o indivíduo somente pode realizar uma criação que esteja vinculada aos seus espaços e configurações. Que tremendo erro. É como se o poeta nascido no Nordeste só pudesse ou, sendo mais preciso, só se interessasse em escrever cordéis e já nascesse com os dotes dos cantadores-repentistas. Sabemos que tal concepção é superficial, muitas vezes cruel, tantas outras vezes preconceituosa e seca. Ou seja, quem se esmera em tal pensamento, não conhece nada, nem do Nordeste, muito menos do Sertão, tampouco dos cordelistas, nem dos cantadores-repentistas. Com relação à pergunta se Gabriel Garcia Marques, em sua obra prima Cem Anos de Solidão, pode ser “regional” e universal, ou, Graciliano Ramos, com sua literatura singular, enxuta, reflexiva, pode também ser “regional” e universal, acredito, que a resposta é positiva, visto que todos os mestres têm essa capacidade, esse elo com o que de mais fundo há no homem, essa verdade que nos norteia em nossas próprias inquietudes e transformações, esse mergulho na memória e nos mistérios, nos tornando densos e recriadores da vida, onde quer que estejamos.

 

  1. No seu último livro você traz à tona um assunto que diz muito sobre a história, cultura e a formação social, econômica e comportamental do povo nordestino: o cangaço. O que o fez revisitar esse tema, explorado também por outros autores no passado e presente?

A bem da verdade, o meu livro sobre o cangaço, “Lampião: Um Estudo de Buscas e Essências”, com primeira edição em 2012 e segunda edição prevista para 2018, traz um apanhado cronológico, desde a primeira aparição do nome de Lampião, em um jornal de Alagoas, com transcrição da informação efetuada pelo Diário de Pernambuco em 1922, devido, ao hoje clássico, assalto à casa da Baronesa de Água Branca, até a morte do cangaceiro do Sítio Passagem das Pedras, na Grota do Angico, em julho de 1938. Então, de 1922 a 1938, no reinado lampiônico, os principais jornais do Nordeste, incluindo alguns importantes periódicos do Sertão, como Correio do Bonfin, de Senhor do Bonfim, O Pharol, de Petrolina, O Itiubense, de Itiúba e o Correio do Sertão, de Morro do Chapéu, trouxeram inúmeras matérias sobre o cangaceiro da antiga Vila Bela, hoje Serra Talhada. De certa forma, os episódios descritos nos jornais rendiam fama a Virgulino, mostravam sua capacidade de estrategista, de homem conhecedor do universo das macambiras e das acauãs, de alma vagando de encontro às suas próprias angústias e inquietações. Sendo assim, efetuei, então, uma reunião entre o material colhido em 202 entrevistados, muitos dos quais nonagenários e centenários, com suas opiniões e convivências em diversas situações do cangaço, e o acervo de jornais e revistas de diversos Arquivos Públicos do Nordeste, principalmente os de Pernambuco, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte e Piauí, além de consultar uma bibliografia, surpreendentemente vasta, que me possibilitou uma catalogação completa, ou seja, de A até Z. O trabalho foi realizado em dois anos e, acredito, consumiu muito dos meus nervos e sensibilidade. No entanto, até agora, tenho, como um dia argumentou Frederico Pernambucano de Melo, recebido o “salário da honra”, ou seja, vivido uma espécie de “missão cumprida” em relação à escrita de um livro que, com suas 700 páginas, talvez indique o enorme esforço que a ele dediquei buscando, cada vez mais, delinear a força e as singularidades dos movimentos que repercutem e aglutinam o Sertão a nós mesmos.

 

  1. Os pesquisadores brasileiros e estrangeiros, via de regra, remetem ao cangaço como um episódio violento e desigual, em uma região ignorada pelo Estado brasileiro, na qual prevalecia sempre “a lei do mais forte” (leia-se os “Coronéis)”, proprietários de terra, que perpetuavam o mandonismo local, influenciando a política, a produção econômica, os costumes e a religião. Que outros aspectos podem ser destacados como resultantes da essência cangaceira e que ainda são sentidos nos dias atuais?

 

O cangaço, com seus desmembramentos e pulsações, é tema complexo e norteador de muitas opiniões, dúvidas, questionamentos, impasses. Impressiona, ainda, a grande quantidade de indivíduos, neste Sertão infinito e misterioso, que poderiam, em seus depoimentos, trazer lumes e esclarecimentos sobre assuntos diversos, expandir as texturas dos enigmas e das circunstâncias. Fenômeno histórico dos mais relevantes para o Brasil, precisa ser pesquisado sempre com mais profundidade, esmiuçado em todas as suas matizes e configurações. Os livros didáticos, de uma forma geral, tocam levemente no assunto, não pontuam a imensa importância do seu estudo, das suas interpretações. Embora, a respeito do mesmo, já tenhamos vários livros de referência, penso, seu campo de estudo continua muito vivo, denso, reafirmando, continuamente, que necessitamos estar atentos aos ecos de nosso povo através do tempo, às conotações de inúmeros fatores que acabaram por nos fundir aos impactos e frenesis dos dias atuais. Com relação à associação do cangaço com o coronelismo e seus impactos na política, economia, costumes e religião, tal fato parece ser latente, contudo seus elos e essências vão mais além. O completo abandono do Sertão, refletido na ausência de escolas, de estradas, de uma economia mais planejada e de um sistema de justiça que possibilitasse uma reparação de muitas injustiças, com certeza contribuíram, decisivamente, para o surgimento e repercussão do cangaço. Evidentemente que há outros fatores, como, por exemplo, as secas periódicas, que atraíam uma enorme quantidade de cangaceiros, saqueando e criando desordens, exatamente em um período onde o sertanejo estava mais penalizado, entregue à própria sorte, sofrendo toda a espécie de desfalecimento e desigualdade.

 

  1. Em suas palestras você traz aspectos de linguagens usadas no Nordeste, as quais suscitam palavras que revelam a variedade linguística das etnias que formaram o povo brasileiro. Essas linguagens são perceptíveis aqui mesmo no Vale do São Francisco. Fale-nos um pouco a respeito delas.

 

O Sertão, com sua abrangência e pluralidade, é território que abriga inúmeros fascínios, filtros, fundamenta o teor da linguagem usada em suas veredas. Entretanto, não nos enganemos, se faz necessário uma busca constante em suas entranhas, para que as verdades se consolidem em nossos espíritos. Assim, determinados vocábulos trazem o envolvimento de muitas nuances e configurações. Por exemplo, no vocábulo “cabrobó”, que dá nome à cidade ribeirinha, sertaneja e pernambucana, não significa a junção de “cabra” com “bode”. Este é um erro que precisa ser reparado urgentemente. Por outro lado, sabendo que boa parte do Sertão, incluindo uma parte do Vale do São Francisco até a Chapada do Araripe, os índios Cariris consolidaram suas almas e texturas, compreende-se o efeito de certas palavras. A região de Cabrobó foi posto de observação da antiga Casa da Torre, além de congregar, como algumas vilas do Sertão, um aldeamento indígena. Então, em cariri, “coprobó”, que originou a corruptela “cabrobó”, significa “guerra”, “luta”, em muito traduzindo todas as mazelas e dificuldades pelas quais passaram nossos índios buscando se afirmar, tentar, pelo menos, sobreviver em um meio que os relegou completamente, que os desestruturou profundamente. O Sertão está povoado de vocábulos cariris, entranhados na memória e no falar do nosso povo. Desta forma, os vocábulos “cocorobó”, “chorrochó”, “orocó”, “orobó”, “ibó”, “bendegó”, são todos cariris. A quantidade de letras “o” impressiona. Contudo, as letras “a” também repercutem e temos “caratacá”, “massacará”, “curaçá”, “piquaraçá”. Não esqueçamos, também, das palavras com repetição de sons, uma intrigante composição dos vocábulos em cariri, como “xique-xique”, “quina-quina”, “quiri-quiri”, “cará-cará”.

 

  1. Com o advento das tecnologias da comunicação, as novas gerações já migram das bibliotecas e seus títulos em livros impressos para ferramentas como o Você tem insistido numa preocupação que é a perda iminente de arquivos valiosos bibliográficos, inclusive cita um caso bem próximos de nós que é a antiga Biblioteca da Diocese de Juazeiro.

 

A respeito da antiga Biblioteca da Diocese de Juazeiro, aliás, sem medo de errar, a biblioteca mais completa e sentimental de todo o Vale do São Francisco, e, indo mais adiante, de todo o Sertão, que atualmente ocupa uma parte da Biblioteca da UNEB em Juazeiro, foi doada a esta entidade, por um bispo, que, graças a Deus, não se encontra mais nas terras de Nossa Senhora das Grotas. O referido bispo, salvo melhor juízo, em uma atitude insensível e grosseira, acabou tirando da Diocese um dos acervos mais espetaculares de livros em uma região, como bem sabemos, carente de leitores, de obras de referência. A biblioteca famosa, moldada pelo espírito e zelo do Bispo Dom José Rodrigues, cresceu e multiplicou suas essências e mergulhos. Bem localizada, no centro de Juazeiro, servia de elo para que os alunos, principalmente os mais humildes, pudessem frequentá-la e dela extraírem os sumos para suas pesquisas. Fui um de seus leitores ardorosos, fundi minha alma a muitos voos, construí em mim mesmo a certeza da expansão das ideias, dos sonhos. O início da escrita do livro do cangaço se deu vasculhando seus livros, jornais, revistas. Nela havia janelões que davam para o Rio São Francisco, que traziam uma luminosidade emblemática ao ambiente inundado por livros, sabedoria, profundidade. Por incrível que possa parecer, apesar do acervo ser valioso e denso, a sua chegada à UNEB ainda gerou conflitos, uma acolhida tumultuada. No entanto, prevaleceu a sensibilidade e o magnífico acervo foi aceito. Todavia, é preciso, cada vez mais, olharmos e sentirmos aqueles livros com ternura, paciência, perspicácia. Em relação à questão do google, penso, que se bem usado, traz benefícios os mais diversos. Contudo, não é muito difícil perceber, as pessoas leem cada vez menos, se aprofundam muito pouco no assunto que desejam discutir ou têm alguma dúvida. A riqueza da busca das fontes desaparece velozmente. Simplesmente consulta-se o google e toma-se o texto lido como uma verdade consolidada. Um verdadeiro perigo. Nossos leitores, na maioria das vezes, morrem antes de nascer. Os livros têm a chave de tudo, mas em uma época consumista e tecnológica, a velocidade da vida não traz o ser humano para si mesmo, o despedaça entre murmúrios, cansaços, desenganos, planos frustrados.

 

 

  1. Você vem trabalhando numa obra nova, na qual retorna aos estudos de Euclides, em especial aos escritos deste gênio grego sobre a matemática. Qual é a sua expectativa em relação a esse trabalho?

 

A bem da verdade, tal obra compõe a minha Tese de Doutorado, defendida na UNESP, sob orientação de Irineu Bicudo, o tradutor do texto grego original de Os Elementos, de Euclides, para a língua portuguesa. Os Elementos têm em sua composição a reunião de 13 livros que tocam em diversos temas da matemática no mundo grego antigo. Especificamente para a minha Tese, analisei o Livro X de Os Elementos, considerado o maior e mais complexo livro euclidiano, que traz em sua essência a configuração da incomensurabilidade, em um total de 115 proposições ou teoremas, ou seja, colocando em termos atuais, o estudo dos chamados números irracionais, que são aqueles que não podem ser representados por uma fração. Acredito que, até abril de 2018, eu consiga efetuar a publicação de tal obra. Tenho conversado com algumas editoras, entre as quais a Editora da UNESP, e, penso, existe uma forte possibilidade de edição do livro em 2018. Assim, continuo firme mergulhando no universo da matemática grega antiga e, até o final de 2018, pretendo, também, publicar um livro a respeito da questão da aritmética nas obras de Arquimedes. Os sonhos são muitos e a vida acaba por nos fundir a voos sempre maiores, capazes de nos atrelarem a nossas percepções mais abrangentes, a nossos olhares dispostos a enxergarem o infinito que há em cada coisa, à força da alma quando o tempo a reinventa constantemente.

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