Aqui tudo é esquecido, desmantelado. Os livros nunca prevalecem, os leitores não existem, a memória é esfacelada, desenganada. As crianças nascem para nunca serem plenamente educadas, as pessoas morrem sem jamais acreditarem nos seus sonhos, movem-se de encontro a ganâncias e deturpações, desorientadas, escurecidas. Os loucos não têm vozes nem oportunidades, a instabilidade prevalece, a incerteza fundamenta o olhar dos navegantes, os naufrágios acontecem sem que ninguém perceba o próprio tombo, as agonias alheias não têm importância, cada um sofre à sua maneira, rude e isolado, nervoso e cansado, entregue a mentiras e afobações. As sombras clareiam os espaços e o porvir, o nada interfere na delicadeza da eternidade, a força do querer é destroçada dentro de nós, o amanhecer engole o que no ser foi expansão, humildade, silêncio, contemplação. Assim, o espírito desfundamenta-se, desagrega-se, as horas avançam em meio ao caos e à bagunça, o medo é achincalhado, coalhado de discórdias, antipatias, os adeuses nascem nas mãos dos cegos e das almas aflitas. Tudo parece ruir, enfraquecer os voos e a sensibilidade. É preciso, então, dentro do embaraço, da anomalia, tirar o amor, a profundidade do entendimento das coisas, a justiça, a paciência, a ponderação, o sorriso denso e transformador. O futuro construirá desequilíbrios e desajustes, descolorirá a face dos beija-flores, das andorinhas e rouxinóis, porá no homem uma deslealdade impressionante, um desamor que ferirá o silêncio das mães esperando seus filhos na noite escura, uma desarticulação doída das ideias, ideais, o pânico das mortes quando os vivos sabem que vão morrer soterrados.

Aqui todos agonizam, retardam seus mergulhos no infinito, estão envolvidos com dissimulações e desassossegos, estragam o porvir alheio. As escolas são desmontadas, destruídas, os professores agredidos, o conhecimento banalizado, as bibliotecas não possuem nenhum valor. Cada um luta pela desmotivação do outro, estraga os planos dos sonhadores. Há um desafeto generalizado, um desamor inacreditável, as horas consomem os nervos e a sensibilidade dos que desejam ir além. Acumulam-se os desencontros, as perfídias, injúrias, carências, balbúrdias. Os dias adoecem as percepções, desequilibram a força dos quereres e das convicções. A solidão infiltra-se nos olhares, corrói o silêncio das crianças, dos velhos. Ninguém é de ninguém. Então, ninguém avança, escuta o outro, respeita a quem quer que seja. A escuridão progride, agride as intenções, os sentidos. Não adianta lágrima, lástima. Os dramas, as tramas dos enredos mal-assombrados da vida, despedaçam o ser, traçam caminhos enviesados na alma. Aceleram-se os desgostos, as fragilidades, os sufocos, as ansiedades. Acumulam-se os doentes, as fúrias, os carentes, as correrias. Os impasses travam as comunicações, cravam no espírito o apelo ao funesto, canhestro, indigesto. Os cabrestos associam-se aos contextos, os desonestos multiplicam-se, vivificam-se dentro da soberba, reta que leva a lugar nenhum. A nação emurchece, cresce definhando, tece nos cidadãos uma agonia generalizada, um desencanto descomunal, afeta os afetos e os fetos que virão ao mundo. O filme é de horror e não precisa chegar ao fim para compreendermos seus conteúdos e discrepâncias. A canção é entoada entre enjoos e atrocidades, ecoa nas calamidades, desigualdades, nos torna personagens movidos a penumbras, culpas, agruras, renúncias.

Aroldo Ferreira Leão

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